Ola,
Hoje fiz a viagem a Chimoio, cidade onde fica o projeto que irei atuar aqui em Moçambique... na verdade fiz uma parte da viagem e foi um dia que posso dizer inesquecível, um dia de confronto com a realidade. Ver pelo National Geographic é uma coisa, tocar é outra.
Deveria sair as 4 da manhã da EPF de Maputo, onde fiquei estes dias na capital de Moçambique e comigo seguiria na viagem o Andrew sul africano que trabalha em um projeto mais ao norte de Moçambique e faria o mesmo trajeto. Não consegui dormir direito mais uma vez, ainda não estou acostumado com o fuso horário e acordei as 2 da manhã... banho longo pois não sei quando será o próximo, preparar uma comida e pé na estrada... pelas 4 chega o motorista que nos leva até a central onde pensava eu, pegaria um ônibus para Chimoio, que fica a 1.400km de Maputo... pensava eu. Chegando na estação me confronto com um monte de chapas (a lotação) que fazem viagens para todos os cantos do país... inacreditável, então a viagem de 18 horas (previstas) seria feita num chapa e não num ônibus, ou melhor em um Chibombo que não passa de uma van um pouco maior... na ‘estação’ encontramos um chibombo que estava se preparando para este trajeto.... um caos, uma desorganização fenomenal... pessoas discutindo pois estavam no chibombo errado e o cobrador não devolvia o dinheiro... polícia para resolver... colocar as malas na van, um sacrifício, muitas malas... todas as pessoas e mais as suas malas vão na van... caberia nela umas 15 pessoas, vão 26 e mais as malas... 18 horas!!!! beleza.
Depois de muito tempo de confusão, chega-se a um resultado ridículo na arrumação das malas, elas caem para todos os lados... passageiros sem o bilhete discutem com o cobrador, crianças pequenas começam a chorar. Neste momento o rapaz que estaria ao meu lado a viagem toda adentra a van... bêbado como um porco, sem o bilhete, discutindo com todo mundo, com um cheirinho que hummm, dava gosto! Nos acomodamos finalmente e o rapaz todo serelepe não para um minuto, pensava que já estava bem apertado lá atrás, no banco eu o Andrew o bêbado serelepe e agora uma senhora entre nós... movimentos eram proibidos, me lembrei do videozinho do avião que recomenda sempre para que de duas em duas horas levante-se para algum movimento nos pés, pernas e tal... mas ali não tem serviço de bordo e me contento com a não mobilidade. A van deixa a estação, começa a odisséia.
Rapidamente o rapaz bêbado mostra que seria um problema, cai para todos os lados, em cima da senhora, nas costas da senhora que o xinga o tempo todo em uma língua local inteligível para meus ouvidos... a senhora se remexe, me aperta um pouco mais o Andrew perguntando o tempo todo... are you ok? e rindo, como se ria... até ai tudo bem, ou quase, mas a situação piora no momento em que as malas começam a cair em cima de mim, da senhora e do bêbado... o bebâdo dorme e com a sutileza de qualquer bêbado cai em cima da mulher como uma pedra.. ela xinga mais... e assim permanecemos por umas 4 horas até a primeira parada... Voltamos da primeira parada e a cena se repete com o agravante que o bêbado traz consigo uma garrafa de vinho, começo a ficar preocupado no momento em que ele abre o vinho dentro da van com uma faca enorme, a senhora xinga... o bêbado vai caindo agora com o vinho na mão... eu observo e me expremo...
A cena se repete por mais umas 4 horas até a próxima parada, com exceção do fato que todos na van começam a se rebelar contra o bêbado... as malas caem, essa segunda parada foi cinematográfica, num vilarejo em meio a muito pouco, ao parar a van todos os tipos de vendedores vem e começam a bater no vidro, vendendo de tudo... desço da van para comprar uma coca-cola (água, rá, nem pensar) as crianças ficam me olhando com ar de curiosidade... ensaio uma brincadeira com elas que começam a me tocar com ares de ‘é real mesmo’ tive a impressão que se não fui o primeiro fui um dos primeiros ‘brancos’ que elas viram... elas me cercam, os mais velhos oferecendo pão, suco, farinha, coco... entro na van. Neste momento os ‘organizadores’ (estou cheio de ‘’ hoje) da van reorganizam as malas (ahuHAUhua) a situação piora por incrível que pareça... a senhora se rebela e diz que não senta mais lá... fica o bêbado do meu lado... neste momento já em um estado de latência... vai dormindo caindo em cima de mim pelas horas que seguem... Nesta hora já estava bem relaxado e apenas rindo da situação.
Quando são umas 4 da tarde.... pufffff a van está envolta em fumaça... era o que faltava, essa porra quebrou.... quebrou e não tem concerto... passam-se algumas horas para que com todos fora da van, motorista e cobrador se decidam o que fazer... e eles decidem não fazer nada, é isso aí... desculpa rapazeada mas fudeu mesmo, sinto muito. As pessoas ficam injuriadas, estamos no meio do nada, como de costume... no horizonte vejo o sol imenso, laranja, como no filme do rei leão se pondo na savanah, penso meu Deus que lugar é esse, ao mesmo tempo em que são esquecidos por toda a humanidade olha só essa natureza... humanidade aqui é pouca... numa das discussões que observava calado numa experiência sociológica moçambicana um homem meio que revoltado diz que o moçambicano... e se atreve, que o africano não respeita o próprio negro, eles não conseguem conversar só se movem quando a discussão passa para a força... e é o que constato como verdade, as pessoas pediram por muito tempo, calmamente para que o cobrador devolvesse o dinheiro de parte da viagem, o que me parecia o mínimo, mas com uma atitude muito desrespeitosa o indivíduo não fala nada... só devolveu o dinheiro quando ameaçaram capota-lo... fiquei com mais alguns pedindo carona e no primeiro que parou falaram para que eu fosse... mas porque? tem umas 3 senhoras com criança nas costas, elas tem que ir primeiro... fico lá ainda por um bom tempo, conseguimos várias caronas finalmente pego minha carona.
Nossa carona foi uma pick up que levou a mim, Andrew e mais três homens na caçamba em direção a um vilarejo próximo (que não me lembro o nome agora), fomos na caçamba por umas três horas ouvindo os barulhos da mata, vendo as estrelas no céu (que é incrivelmente estrelado, é claro) e nos encolhendo do frio, já que o rapaz da pick-up como todos os africanos que me dirigiram até agora, gostava da velocidade... algumas vezes que olhei o velocímetro me assustei, a velocidade era 150.. 160... chegamos ao vilarejo e a cena era surreal... no meio da mata mesmo aparece uma vila, com bastante gente na rua... muitas fogueiras, festas em todos os lugares.... muita música... reggae, música brasileira, música moçambicana... casas de palha, todas as casas são de palha... entramos em uma estalagem (creio que seria o melhor nome) onde passamos a noite, no lugar muitos quartos, todos xexelentos, em meio a uma grande fogueira que produzia água fervida para tudo que necessitasse água... Vou com o Andrew até a frente da estalagem onde vendiam comida, estamos famintos, olho a comida e peço uma bolacha e uma coca-cola, meu estômago ainda não deve estar preparado para aquilo que via, fico lá na frente observando... as casas de palha, as pessoas dançando reggae, muito alcool, várias fogueiras, crianças na rua, discussões... peço um cigarro, ponho meu sleeping bag no chão e vou dormir...
No dia seguinte acordamos as 6 da manhã pois seguiriamos com o caroneiro para Ishope, uma cidade mais a frente, de onde eu e Andrew poderíamos pegar um chapa que nos levasse a Chimoio, bunda na caçamba e vamos de novo de carona com o corredor... antes de sair vou muito inocente escovar os dentes num banheiro bem limpinho! Ahhh inocência, água encanada.... rá.... vou pedir um pouco de água para um senhor (foto ao final) que gentilmente me arruma uma garrafa com água fervida... alguma higiene feita, percebo por que as pessoas geralmente não tem um cheiro maravilhoso... não tem água, oras, eu estava fedendo....vamos para fora da estalagem e a cena era bem diferente daquela a noite... muitas mulheres com suas crianças nas costas indo buscar água em algum lugar, mulheres vendendo frutas, crianças vendendo de tudo.... cade os homens??? Ahh estavam lá no reggae a noite bebendo, havia aprendido no IICD que por aqui a mulher tem o papel de trabalhar, cuidar dos filhos e tudo mais, mas na realidade me parece um pouco pior, raramente vejo um homem trabalhando... muitas mulheres e crianças... Até este momento havia perdido boas fotos por bobagem, estava meio que na segunda de tirar minha máquina que parece muito cara e ficar lá pagando de branco fotógrafo... as pessoas não são ruins, muito pelo contrário são muito trabalhadoras (excluindo homens na melhor idade produtiva) gentis, se ajudam demais, gostam de trocar, conversar... porém quando se passa fome, uma máquina fotográfica pode significar dois meses de alimentação... pergunto ao Andrew, você acha que posso tirar umas fotos? Ele diz claro, tira uma de mim! então saco a câmera e tiro umas fotos, umas crianças que observavam vem em minha direção correndo... tira uma de mim!!! tira uma de mim!!!... tiro várias fotos e mostro para elas que se riem demais... e me rio com elas, olha que bonito que você ficou nessa foto... putz mas esse cara é feio demais! e ficamos lá rindo um pouco antes da van ir embora... na verdade estou me acostumando a essa realidade que para mim é muito cruel e por mais que soubesse que existe, assim como você... estudar sobre ou saber que existe não é a mesma coisa que vivenciar essa loucura.
Seguimos viagem e no caminho mais quatro jovens que pediam carona entram na caçamba, chegamos a Ishope em 1 hora eu e Andrew pegamos a van para Chimoio que como de costume vai lotada, mas de maneira mais humana desta vez... finalmente chego após 31 horas de viagem a EPF.
Enfim, pensei agora em escrever um pouco sobre minhas primeiras impressões sobre o projeto, mas já escrevi demais e as primeiras impressões muitas vezes enganam, numa próxima escrevo sobre isso... estou aqui em Moçambique a muito pouco, terei muitas opiniões sobre tudo ainda, porém estes poucos dias até chegar a Chimoio foram suficientes para estampar em minha cara que a realidade aqui é mesmo muito, muito triste, por mais que não venha de um país rico como o Brasil, onde existe a miséria, falta muita coisa... aqui todo mundo é pobre, a diferença está apenas entre pobres, muito pobres e miseráveis... não há estrutura nenhuma, as cidades são apenas aglomerados de gente... a capital é um caos... as casas são em sua grande maioria de palha... não tem água ou energia elétrica em muitos lugares... não tem comida para muita gente... o transporte é degradante... Eu pessoalmente sempre gostei de me aventurar, de encontrar aquilo que para mim é desconhecido, sempre quis trabalhar com educação por mais que não tenha feito mais que poucas aulas voluntárias de história, pessoalmente eu tenho certeza que alcançarei meus objetivos aqui, também sei que não mudo o mundo e daqui a 6 meses quando fizer o mesmo caminho de volta verei a mesma realidade, com os mesmos problemas e tudo mais, mas realmente quero contribuir um pouco que seja para que de alguma maneira algo melhore, não apenas com o dinheiro arrecadado lá em Michigan que está muito longe agora, mas com as pessoas que realmente precisam muito de pessoas que auxiliem a sair desse ciclo vicioso de sofrimento.
Aquele abraço
5 Comments:
Chorei!
te admiro muito! Espero que consiga crescer mais e ajudar outros a crescerem um pouco melhor.
Precisando de ajuda.. esotu por aqui!
beijo
São pessoas como você, que tem a coragem e a disponibilidade para ajudar ao próximo que fazem a diferença.Mas eu como sua mãe e que lhe amo muito fico com o coração muito apertado. cuide-se!
Uau... sei que em sua narrativa, apesar das minúcias, tentou suavizar um pouco o cenário. Fico aqui imaginando e cada vez mais admirando sua coragem e determinação. Cagona que sou, certamente teria desistido já nos EUA... Sei que, daqui onde estou, minha contribuição para você é oração. Peço a Deus que te ilumine e dê todo conhecimento e força necessários para que você faça, sim, a diferença... que seja o começo de uma mudança... Sabemos que nada é da noite pro dia, mas, toda tentativa com verdade no coração é muito bem-vinda em qualquer lugar do mundo... e até até no fim do mundo!!
Estou com você, sempre e para sempre!
Love U 2 much!
Ôta
Falar o que do seu post???
que cheguei a sentir o cheiro do bêbado? que consegui ver o sorriso das crianças? que senti a dor das malas caindo sobre a sua cabeça? tudo isso.. vc escreve muito bem, descrevendo em ricos detalhes aquilo que lhe afeta.
Certeza que fará um grande trabalho e que por mais que vc veja a mesma imagem no seu caminho de volta, sabe que alguma coisa fez para que eles possam mudar para melhor.
Parabéns thiagão
PQP!
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